Tarde demais
- Flávio Stresser Araújo
- 5 de jan. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 31 de mar. de 2024
Esse conto foi escrito como participação no Concurso Memória Viva de 2020 do Instituto Vita Alere. O conto ficou em 3º lugar na categoria de escritores enlutados pelo suicídio e, com isso, foi publicado no livro Histórias de Sobreviventes de Suicídio (vol. 3). A imagem de capa é uma tela do pintor nipo-brasileiro Fernando Ikoma, que meu pai comprou para simbolizar nosso vínculo de pai e filho; agora, essa tela decora uma das paredes da minha casa. Muito tempo já se passou desde aquele dia 05 de janeiro de 2017, mas a saudade continua sempre.
– Oi, tudo bem? Então... preciso que você ligue pro trabalho do seu pai. Sim, é sobre ele. Não, não, tá tudo bem... Fica tranquilo... Só precisam falar com você sobre um negócio lá, não se assusta... Me liga depois que falar com ele, tá bom? Abraço.
Assim falou a voz que me acordou naquela manhã preguiçosa de janeiro. Era quinta-feira, eu estava de férias e de mau humor. Não era só pelo celular tocando de repente, mas por causa do dia anterior, aquele dia 04. Enquanto o meu cérebro ligava, um frio embrulhou minha barriga, como se pressentindo que algo estava errado. Me veio a vertigem, como aquela quando se olha para a rua pela janela de um prédio muito, muito alto. Por que a ligação inesperada? Por que eu tinha que ligar para alguém? Por que não era você me ligando? Segurando o telefone com o contato aberto, à espera do meu comando para fazer a ligação, encarei o botão verde como se estivesse olhando para o chão, andares e mais andares abaixo. Estava doente? Tinha sido assaltado? Demitido? A vertigem se intensificou. Depois da conversa de ontem, essa notícia seria a pior possível... ou era o que eu pensava.
A conversa tinha me deixado um gosto amargo pelo resto do dia. Lembrei da forma como brigamos, ou melhor, como eu briguei com você. As palavras voltavam à minha cabeça em fragmentos, como se procurando por alguma pista do motivo pelo qual eu precisava agora ligar para outra pessoa para falar de você, como se você tivesse me avisado o porquê e eu que tivesse esquecido. Mas não, nada foi dito sobre o que estava acontecendo; ao menos não de uma forma que eu tenha escutado.
Voltei à raiva e à angústia do dia anterior, pensando em como havia me exaltado e me irritado com você, em como te magoei. Você entrou no carro e conversamos enquanto eu dava a volta na quadra. Soltei tudo o que sentia, tudo o que estava preso, sem medir as palavras ou as consequências. Você só ouviu; até tentou se defender, dizer que as coisas iam melhorar, mas não aceitei. “As coisas nunca melhoram, pai, já ouvi tudo isso antes”. Não aceitei seu pedido de desculpas, não aceitei sua promessa de dias melhores e de que dessa vez ia ser diferente. Não aceitei.
Certa vez eu li um texto que dizia que nós sempre, ou quase, sabemos quando é a primeira vez que fazemos algo, mas raramente sabemos quando é a última vez. Na primeira vez em que você saiu de um carro que eu dirigia, tantos anos antes, você disse que estava orgulhoso, que eu estava dirigindo bem; depois me deu um abraço e desceu. Eu sabia que aquela era a primeira vez que te dava carona e fiquei feliz com a pequena conquista. Já naquela quarta-feira, te dei um abraço a contragosto, com raiva, e você desceu do carro com uma expressão de derrota no olhar. Disse que a gente ia marcar um jantar no fim da semana e só resmunguei uma meia resposta. Aquela foi a última vez em que você saiu de um carro que eu dirigia, e eu não sabia que seria.
Apertei o ícone verde no celular. Dei meu salto, ouvindo o toque pelo telefone por algumas vezes até atender. Durante a conversa, a sensação de queda, o suspense, a dúvida sobre o motivo de estar ligando para seu colega e não para você. E por que eu obedeci? Por que eu não te liguei ao invés de ligar para seu colega? Acho que uma parte minha já sabia o que vinha pela frente. Ele atendeu, me deu bom dia e perguntou como eu estava. O coração palpitava e o frio na barriga crescia enquanto as frases abriam caminho para o motivo de tudo. Ao mesmo tempo em que queria saber o que estava acontecendo, uma parte minha dizia que estava tudo bem, que era para aproveitar a conversa antes do que estava por vir.
E então, depois do salto, a queda: “Seu pai se matou”. Com um baque, atingi o fundo de um poço. Ele era escuro, era úmido, era triste e furioso, e, acima de tudo, era dolorido. O grito, a surpresa e o choro. A negação. O grito e mais choro. O telefone desligado no sofá. A raiva, o soco e a cabeçada na parede. Mais gritos. Os arranhões, o choro e a culpa. A culpa. A culpa e o ódio. Fiquei preso em um estupor, em um limbo de culpa e ódio próprio.
O dia foi passando. Pessoas quiseram ajudar, dar suas condolências, mas eu não estava lá. Meu corpo caminhava conforme era guiado, mas por dentro eu estava isolado. Sentado num canto escuro, cercado por nada mais do que minhas memórias e minha culpa, que tampava a boca do poço sem deixar frestas para a luz entrar. Do mundo de fora, só ecos distantes me alcançavam, enquanto me via diante de você.
Nossa conversa, a que eu não sabia que seria a última, tocava de novo e de novo e de novo. Minhas palavras, agora não mais no calor do momento, doíam em mim como imagino que tenham doído em você. Como pude te machucar daquele jeito? Como pude dizer o que disse? Como pude ser tão mau? Implorei o seu perdão, as pessoas me ouvindo balbuciar “desculpa, pai” sozinho enquanto o dia se arrastava no mundo fora de mim.
Na tarde depois de nossa briga, você me disse “eu te amo”. Foi a última vez que você faria isso e eu não sabia. Como tantas outras antes, foi só mais uma mensagem singela na tela do meu celular, que irritado como estava eu ignorei, prometendo para mim mesmo que responderia amanhã com a cabeça mais calma. Mas não deu. Você nunca recebeu minha resposta, porque amanhã foi tarde demais.
Pensei nas coisas que nunca iriam acontecer. O jantar do fim da semana que você queria combinar, a nossa próxima ida ao cinema, a nossa viagem pra Ushuaia. Nada disso. Você não iria estar lá para me ver casar. Não vai estar lá para me dar seus conselhos quando eu for pai, nem para abraçar seus netos. Não vai mais estar lá. Todos aqueles futuros agora iriam para sempre ter um vazio enorme onde você deveria estar. E a sua falta não iria só deixar um vazio no meu futuro, mas também se estender para o meu passado também. Tudo o que passamos e vivemos juntos, todos os anos em que moramos na Alferes Poli, as nossas idas ao Outback, as pizzas da Domino’s nas terças-feiras porque era em dobro, as vezes em que voltávamos a pé do mercado com trocentas sacolas no braço e rindo porque você dizia brincando que aquilo era a nossa musculação, todas essas memórias agora deixavam um grande vazio no meu coração. Um vazio que dali em diante iria me lembrar da sua falta em tudo aquilo que fazíamos juntos. Um silêncio gritante que marcaria a sua ausência para sempre.
O tempo passa e dizem que ele cura todas as feridas. Não sei quanto a curar, mas ao menos eu vejo que essa ferida cicatrizou. Hoje, anos depois, discordo de como eu pensava. Hoje entendo que por mais dor que a sua ausência me cause, o carinho que a sua presença deixou em mim prevalece. Pode não ser em corpo, mas vai estar lá quando eu lembrar dos filmes que vimos juntos; quando eu viajar e me lembrar das suas dicas para agilizar o embarque no avião; quando rir sozinho lembrando das piadas que fazíamos por motivo nenhum; vai estar lá quando eu levar meus filhos na lanchonete da Cândido Lopes, aquela aonde o vô te levava na sua infância e você me levava na minha. Você pode ter ido embora, mas minhas memórias vão continuar aqui para te manter vivo em mim
Mas isso não quer dizer que aceito tudo do jeito que foi. Queria ter tido mais tempo, queria que tivesse sido diferente. No começo, eu queria voltar para aquela conversa, mudar o que eu tinha dito, na esperança de que você não fizesse o que fez. Mas o tempo mudou minha visão. Não é e nunca foi meu o poder de fazer você mudar sua decisão, mas ao menos queria que nossa última conversa fosse diferente, mesmo que não conseguisse te manter por aqui. Queria pelo menos que ela tivesse sido como foram tantas outras antes dela, alegre, bem-humorada, feliz.
Queria ter dado mais uma volta na quadra e mais outra e depois outra; queria ter dito que tudo bem, eu te desculpava; queria ter dito que não tinha problema, que eu entendia o que você passava, que não precisava se preocupar com isso; queria continuar nossas voltas pela quadra eternamente, fazendo a curva do sinaleiro perto do seu trabalho, vez após vez enquanto falávamos sobre a vida, o passado e o futuro; queria ter ouvido você falar mais das suas viagens e sobre as que ainda faríamos juntos; queria ouvir seus medos e receios e te dizer que eu estava ali para te apoiar; queria ouvir você me contar mais da sua infância, ouvir de novo como o vô te levava na lanchonete da Cândido Lopes quando vocês vinham do interior para comer pizza e tomar vitamina; queria ouvir você cantar de novo as músicas em inglês do seu próprio jeitinho e não ligar pros erros; queria ter ouvido mais os seus CDs do Elvis que ficavam repetindo até eu enjoar; queria ter rido com você sobre nossas peripécias, sobre a época em que morávamos juntos lá no Centro. E depois de recontar todas as histórias, queria ter inventado mais conversas para te manter ali comigo, para te enrolar enquanto fazíamos mais outra volta na mesma quadra, torcendo para você esquecer de ir embora.
E quando não tivesse mais como enrolar, quando você realmente tivesse que sair do carro, pela nossa última vez, queria poder te dar aquele abraço, daquele jeito que não dei, apertado e com vontade; queria poder dizer aquilo que eu não te respondi antes que fosse tarde demais: “pai, eu te amo muito e vou sentir saudade”.
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Flávio Stresser Araújo
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